segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Do Samba Canção à Bossa Nova

Pós-guerra - A "dor-de-cotovelo" - Pré-bossa


Ao final da década de 40, o samba, a primeira revolução musical genuinamente brasileira, as alegres marchas, estavam basicamente confinadas ao período de carnaval. O pós-guerra deixara cicatrizes em toda a produção cultural mundial. Não surpreendem as letras doloridas em vozes chorosas que invadiam o rádio. Dezenas de milhões de mortos. Bombas no Japão. Europa dividida e arrasada. O Brasil não estava indiferente. Sofria com "dor de cotovelo", mergulhado na "fossa".
Toda a poesia das canções estava carregada de uma atmosfera spleen ultra-romântica. O ritmo da moda no rádio o ano inteira era o samba-canção, com letras que tratavam de solidão, desespero, traição, amores desfeitos, como notou Ruy Castro, num "festival de almas torturadas".
Emblemáticas desse estilo são os sambas-canção do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, como Felicidade, gravada originalmente em 1947 pelo conjunto vocal Quitandinha Serenaders:

Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito
Ainda mora
E é por isso que eu gosto
Lá de fora
Porque sei que a falsidade
Não vigora

E a década de 50 começou, e junto veio o auge da "música de fossa'. Em 1952, o "rei da voz", Francisco Alves (Chico Viola), morreria em um acidente de automóvel; em 1954, Getúlio se suicidaria; em 1955 Carmem Miranda faleceria em Los Angeles. O Brasil estava triste.

Contribuiu para essa tristeza a perda da Copa do Mundo de futebol. Depois de uma campanha arrasadora, a seleção brasileira só precisaria empatar na ultima partida contra o Uruguai, para se sagrar campeã. Depois de estar vencendo por 1x0, permitiu que o time da camisa azul celeste virasse o placar para 2x1, na inauguração do Maracanã, no Rio de Janeiro. Foi um dos maiores traumas da historia da cultura popular brasileira. A auto estima estava baixíssima, a ponto do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues ter proposto a teoria segundo a qual éramos, perante o mundo, acometidos de uma síndrome de vira-latas.

A musica de "dor de cotovelo" era a versao brasileira do blues norte americano, e viria a revelar importantes cantoras, como Silvia Telles, Maysa e Dolores Duran - as duas ultimas tambem compositoras.

O grande sucesso de 1952 foi Ninguem me ama, de Antonio Maria e Fernando Lobo:

Ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama
De meu amor


A intérprete era a estreante Nora Ney, egressa do fã-clube de Dick Farney. Os fãs-clubes de Farney e Lucio Alves eram reduto para jovens que rejeitavam samba, carnaval e queriam consumir musica norte americana, sobretudo o jazz. Em meio a tristesa com o tiro e a carta de Vargas e com as letras desesperadas das musicas "dor de cotovelo", estava sendo semeado o decreto de chega de baixo astral!

Nos encontros nos fãs-clubes, além de consumir música, fazia-se música. Chamavam a atenção as inovacões harmônicas de Johnny Alf ao piano e de João Donato ao acordeão, que podem ser entendidas como pre-bossa.

O "presidente Bossa-nova"

Depois da tentativa de golpe, em 1955, em 56, enfim, Juscelino Kubitschek era empossado o novo presidente do Brasil. Sob o slogan "50 anos em 5", baseado na busca de um crescimento acelerado do pais, JK desnacionalizou boa parte de nossa indústria, permitindo assim a entrada de capital estrangeiro e tecnologia importada.

Brasil-exportação

De Diamantina, terra de JK, partiria o baiano João Gilberto em 1957 rumo Rio de Janeiro, com uma novidade que muita gente estava esperando no Brasil. A batida do violao.

A beira da praia, na Zona Sul do Rio, os garotos Roberto Menescal e Carlos Lyra, influenciados pela musica do violonista Barney Kessel, buscavam uma musica que nada tivesse a ver com o "Ninguém me ama/Ninguém me quer". Tocavam violão e mantinham uma academia para ensinar o instrumento. Uma das alunas foi a capixaba Nara Leao, cujo amplo apartamento em Copacabana era um templo da musica que estava nascendo na ainda capital do Brasil.

Joao Gilberto apresentou seu violao a Roberto Menescal, que espantado com aquilo tratou de leva-lo para que todos o conhecessem. Mas quem viu o mundo se descortinar diante da batida de João Gilberto foi Tom Jobim.

Há algum tempo, Jobim vinha procurando uma maneira de inovar a harmonia do samba. O samba-canção era uma possibilidade, mas ainda assim limitada. Ja havia assinado parcerias com Dolores Duran e Billy Blanco. Mas seu grande parceiro na Bossa Nova viria a ser o poeta e diplomata Vinicius de Moraes.

Ja haviam composto juntos a trilha sonora de Orfeu da Conceição, adaptacao de Vinicius para a tragédia grega no carnaval. Uma das canções que acabou não sendo aproveitada pela peça foi uma experiencia de Jobim com o choro que Vinicius pôs letra. A canção ficou engavetada um ano, até que Joao Gilberto apareceu com seu violão.

Diante daquela batida seca que simplificava ao extremo o samba, Tom percebeu as possibilidades para as harmonias complicadas que estava inventando. Lembrou-se da canção engavetada que viria a ser gravada em dois discos históricos em 1958. O primeiro é o LP Canção do amor demais - com todas as composições de Tom e Vinicius na voz de Elizeth Cardoso. O segundo seria um 78 rpm de Joao Gilberto. A canção decreta o fim da tristesa e o fim da "fossa". A harmonia ao longo da primeira estrofe é em tom menor, o que realça o tema da tristeza.

A partir da segunda estrofe, com a conjunção adversativa Mas, ocorre uma reviravolta na letra, instala-se a alegria e a harmonia se dá em tom maior, reforcando a oposição e a mudanca de clima com predominio da alegria sobre a tristesa.



O nacionalismo seria o principal argumento contra a Bossa Nova. Seus críticos, principalmente devido ao momento político da década de 60, irão acusá-la de ser música americana, "entreguista", de ofender a música brasileira, especialmente o samba. Bom, o importante é que já estava iniciada a profunda mudança na música brasileira que iria ganhar o mundo inteiro. Duas canções que João Gilberto viria a gravar podem ser entendidas como verdadeiros manifestos da estética da Bossa Nova. Trata-se das metalinguísticas Desafinado, onde o termo Bossa Nova aparece pela primeira vez, e Samba de uma nota só.

Casamento perfeito entre letra e música, compostas por uma parceria igualmente perfeita, Tom Jobim e Newton Mendonça, que infelizmente morreu muito cedo, e acabou deixando à Vinícius a tarefa de ser o grande poeta da Bossa.



Por mais que se acuse a Bossa Nova de americanizada, é injusto atribuir a acusação a João Gilberto. Ao final do século, computadas todas as canções que ele gravou, observa-se que mais de 70% são canções antigas, genuinamente brasileiras que ele recriou ao seu estilo. A música brasileira sim ganhou uma nova roupagem elegante e tornou-se produto de exportação digno de ser consumido no mundo inteiro, muito diferente do exotismo caricatural de Carmem Miranda.

Caetano Veloso, em seu livro Verdade tropical, consegue explicar como ninguém a ligação de João Gilberto com as raízes da música brasileira. Caetano lembra de um samba-canção - Caminhos cruzados - de Tom Jobim, gravado pela cantora e compositora Maysa na fase pré-Bossa Nova ("dor de cotovelo") e regravado por João Gilberto: "A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e sobretudo pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir com o ouvido interior - o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizadas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro da primeira atabaque no nascedouro do samba.

Nos primeiros anos de seu deslumbramento com a Bossa Nova, o jovem compositor Caetano chegou a escrever:

Clever boy samba (1964)

'Come to me my melancoly'
Samba agora é assim
Se não é bossa nova
Não está pra mim
Pra mim, João Gilberto
Orlandivo é uma coisa só...

O verso Pra mim, João Gilberto/E Orlandivo é uma coisa só faz referencia a um dos primeiros desdobramentos da Bossa Nova: o samba de balanço ou sambalanço, que teve no cantor e compositor Orlan Divo seu mais eminente expoente. Enquanto a Bossa Nova era mais elitizada, feita para se ouvir e se apreciar sentado, o sambalanço, herdeiro das mesmas influências norte americanas, era para se ouvir dançando.

No início do séc. XXI, Orlan Divo agradeceria aos "piratas' a sobrevivência de seu nome. Por conta das cópias não autorizadas, hoje o artista é mais conhecido no exterior do que no Brasil. 


Retirado (parcialmente editado) do livro Brasil Século XXI - Ao Pé da Letra da Canção Popular

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